"Mesmo em democracia é importante denunciar os erros"

Yochai Benkler, professor na Faculdade de Direito da Universidade de Harvard e considerado um dos gurus da Internet, esteve em Lisboa para participar nos encontros da Fundação Francisco Manuel dos Santos. Em entrevista ao DN, afirmou que "mesmo em democracia, é importante denunciar os erros e os abusos"
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Num artigo, que publicou no diário britânico The Guardian, afirmou que no processo do cabo Manning [que forneceu o material para a WikiLeaks] o que estava a ser julgado era o jornalismo. Quer explicar?

O cabo [norte-americano] Manning infringiu a lei, ele próprio o afirmou. O debate foi sob que tipo de lei infrigiu. Os primeiros dez meses da sua detenção foram escandalosamente ilegais e em absoluta contravenção com o código militar, precisamente para assustar futuros delatores. Foi um esforço para os aterrorizar...

Foi uma forma de passar uma mensagem? De o transformar em exemplo?

Exatamente. Mas isso levanta uma questão: mesmo num país democrático é importante denunciar os erros e os abusos, são precisas pessoas que os denunciem porque os serviços de segurança, pela sua própria natureza, ou as grandes organizações têm problemas. Uma outra questão prende-se com o facto de Manning ser acusado de "ajudar o inimigo", uma acusação que se prendia menos com Manning, já que não se estava num campo de batalha, mas mais com a WikiLeaks que se queria caracterizar como uma organização terrorista. Daí que no meu testemunho no julgamento de Manning tenha explicado que a WikiLeaks é parte da imprensa de hoje que já não só os jornais, diários ou semanários, mas o que se coloca no online, os blogues, as pesquisas académicas.

Apoiou a WikiLeaks?

Apoiei o que fez, o papel que desempenhou foi fornecer o mecanismo para que o delator, uma resistência à censura que possibilitou, de uma forma muito inteligente, o tornar públicas as histórias no [jornal] The New York Times, no Guardian, na [revista] Spiegel. Em termos legais, não se podia separar a WikiLeaks do New York Times ou dos outros jornais que revelaram as histórias. Se o delator era o inimigo, a imprensa também o era.

Foi por isso que considerou ser um processo sobre o jornalismo?

Exatamente.

E Edward Snowden [ex-funcionário da CIA e da NSA]? Defendeu que deveria ser amnistiado pelo Congresso.

Guantánamo...

Sim, até Guantánamo. Pelo material que Snowden revelou vimos que o sistema de segurança nacional criou mecanismos que o isolou de processos normais. Hoje a maioria das pessoas entende os erros que o sistema de segurança nacional cometeu. E é importante que alguém, dentro do sistema, alerte o mundo exterior quando ele descarrila. Snowden fê-lo da forma mais responsável. Quanto mais se analisa as suas revelações mais se percebe que como elas mostram como estávamos a agir mal, a violar a Constituição, e que temos de acabar com isso. Quem está dentro do sistema tem de ter muito cuidado como atua e quem o denuncia tem de ter a certeza que não será perseguido por denunciar algo que tem de ser corrigido.

Considera que após o 11 de setembro os EUA estão pior no que toca ao respeito pelos direitos humanos, dos cidadãos, etc?

Sem sombra de dúvida. O 11 de setembro provocou uma maciça violação dos direitos humanos, relançou um imensa ambição militar, mesmo com o apoio dos democratas. E penso que talvez o trágico sucesso da Al-Qaeda foi forçar a América a responder de forma violenta. E hoje vivemos com uma espécie de doença em que partes do nosso corpo estão a atacar o próprio corpo.

Isso significa que os americanos estão tão assustados com a hipótese de outro ataque que a maioria aceita tudo o que é feito?

Não penso que, em geral, o povo aceite tudo. E penso que o Presidente não vai ao Congresso pedir autorização para fazer a guerra ao Estado Islâmico é porque não tem a certeza de que irá ganhar.Tal como aconteceu quando foi o caso Snowden, um bom número de pessoas não gostou de saber as violações que tínhamos cometido. Também neste caso, penso que um bom número de pessoas não aceita a ideia de outra guerra. Mas há uma grande retórica e poder nas agências de segurança para continuar com as mesmas práticas.

Mesmo com as coisas que estão a acontecer no Iraque e na Síria, o Congresso diria não a Obama?

É difícil de prever. Mas há forte oposição, e apoio, entre os democratas e os republicanos e quando o resultado não é claro, a Administração não quer correr o risco de um "não". A América está dividida. Se fosse na década de 90, logo depois do Kosovo, estaríamos prontos a avançar contra o EI que são tremendamente imorais. Mas a experiência dos últimos dez anos afasta-nos da intervenção. Não se trata da moralidade da intervenção, mas do que nos aconteceu até agora.

Tem cidadania israelita e americana. Quando deixou Israel?

Há 25 anos.

Para alguém que está longe, como vê a situação do processo de paz?

Trágica, no mais profundo sentido da tragédia grega. Toda a gente sabe como vai acabar e não são capazes de sair da situação...

Como vai acabar?

Penso que, a um certo nível, palestinianos e israelitas sabem que a solução dos dois Estados é a única solução mas ao mesmo tempo ninguém dá os passos necessários para o conseguir. Os momentos em que estiveram de acordo foram muito raros e o assassinato [4 de novembro de 1995] de Yitzhak Rabin [primeiro-ministro israelita], o assassinato político da história moderna, teve um resultado terrível....

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